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Violentado pelo zelo modernista
uma resenha de Música de Invenção, de Augusto de Campos
(São Paulo: Perspectiva, 1998)
por Carlos Palombini
<palombini@altavista.net>

Música de invenção, uma coleção de artigos escritos por Augusto de Campos, foi publicado em 1998 pela Editora Perspectiva de São Paulo. Estes artigos apareceram entre 1957 e 1997 no Suplemento Literário de Minas Gerais, na Enciclopédia Abril, na revista SomTrês e nos diários Folha de São Paulo, Jornal da Tarde e Jornal do Brasil. O livro se divide em uma Introdução, três Capítulos, um Pós-Capítulo, dois Apêndices e um Índice de Ilustrações.

O Capítulo I, "Palavra e Música", contém artigos sobre a música de Provença, Le testament de Pound, as músicas de Pound/Antheil e Stein/Thompson e os Pierrot lunaires de Schoenberg e Giraud/Hartleben; ele inclui a recriação por Campos da tradução de Hartleben do Pierrot lunaire de Giraud e a tradução por Campos do prefácio de Schoenberg à composição. O Capítulo II, "Radicais da Música", contém artigos sobre Satie, Joplin, Smetak, Webern e Varèse; ele inclui traduções de excertos de Satie. O Capítulo III, "Musicaos", contém artigos sobre Cage; ele inclui uma entrevista de Campos ao crítico J. J. de Moraes e pastiches de Cage. "Pós-música", o Pós-capítulo, contém artigos sobre Scelsi, Nancarrow, Antheil, Nono, Ustvólskaia, Cowell e a "pós-música". O Apêndice I, "Notas sobre Notas", contém artigos sobre melodia de timbres, microtonalismo e Stravinski. O Apêndice II, "Polêmica", contém a defesa de Boulez por Campos e a tradução por Campos da "Homage à Webern" de Boulez.

Na quarta capa, Tragtenberg dá o tom. O livro "é para quem curte a música com amor & rigor". Campos "foi o primeiro a abordar compositores como Webern, Varèse, Cage, Boulez e Nono", o primeiro "a divulgar verdadeiros 'terremotos subterrâneos' como Antheil, Cowell, Nancarrow, Scelsi e Ustvólskaia". Ele é "o poeta do pós-tudo" agora apresentando a "pós-música dos silêncios, sons e ruídos." Música de invenção é "o livro mais importante sobre o assunto" já publicado na "terra de 'surdos-músicos'" conhecida por Brasil.

Como Campos explica na introdução, os artigos não têm propósito sistemático. O que os liga é o fato de tratarem do que ele chama, baseado em Pound, músicos-inventores. Tendo defendido os compositores Tropicalistas dos anos sessenta (Gilberto Gil, Tom Zé e Caetano Veloso) e vendo-os canonizados pelos mídia, Campos se volta agora contra "a dessensibilização auditiva [...] à música contemporânea." É inadmissível que "a maravilhosa aventura da música de alto repertório" seja arruinada pela "preguiça auditiva" e pela "avidez mercantil das mídias." Devemos todos "despertar dos colchões sonoros da música palatável" para a "música-pensamento dos grandes mestres e inventores", "os santos e mártires da nova linguagem". Campos tratará de "questões a que a música contemporânea de invenção deu respostas admiráveis". Nas entrelinhas contará "um pouco da história da guerrilha artística."

De acordo com a introdução de Campos ao ABC da literatura [sic] de Pound, existem seis categorias de escritores: (1) inventores, responsáveis pela descoberta de um novo processo; (2) mestres, que exploram tais processos; (3) diluidores, os sucessores menos bem sucedidos dos dois primeiros; (4) bons escritores sem qualidades, que realizam um trabalho razoável em estilo de época; (5) o tipo belles lettres, que cultiva áreas restritas da arte de escrever; e (6) lançadores de modas, populares mas perecíveis. Os melhores críticos, Pound afirma, são aqueles que contribuem para uma melhora efetiva da arte que criticam; depois vêm os que focalizam o melhor; os piores são aqueles que desviam a atenção do melhor para o de segunda linha ou para si. O mau crítico se declara quando começa a falar do autor e não da obra. O primeiro e o mais simples dos testes é verificar as palavras que não funcionam.

Como Perloff sugere em "The Music of Verbal Space" (in Sound States, 1997) e Hollander observa em Vision and Resonance (1975), os poetas concretos do grupo brasileiro Noigandres (Augusto de Campos, Haroldo de Campos e Décio Pignatari) não são particularmente notáveis por suas incursões sonoras. Música de invenção é pródiga em assonâncias, consonâncias, aliterações, epítetos, lugares-comuns, adjetivos e metáforas, nem sempre do melhor bom gosto: a música de Provença é "uma proeza"; "a era de Erik" é "a era do Rag"; a música é "o mais abstrato dos gêneros artísticos"; Ustvólskaia é "a esfinge musical da Rússia"; a música de Reich é "a provocação da tautologia molecular"; Cage é "o profeta e guerrilheiro [!] da arte interdisciplinar"; as peças de Cowell "prenunciam as tropelias rítmicas das pianolas desenfreadas de Conlon Nancarrow"; Eisler é "aquele medíocre discípulo de Schoenberg que a má consciência tentou inutilmente promover ao primeiro time". Crises de retórica reativa são freqüentes. Ao que tudo indica, a guerrilha artística teria começado quando Willy Corrêa de Oliveira vetou o apoio da Editora da Universidade de São Paulo a um dos projetos editoriais de Campos.

Música de invenção tem o aspecto de uma biblia pauperum do culto musical do poeta concreto. Sobre uma página das Quattro pezzi per orchestra, Campos sobrepõe a assinatura e o emblema de Scelsi. Sobre uma fotografia de Webern nos Alpes, Campos sobrepõe uma página das Variações para piano opus 27. Sobre um close-up do olho de Schoenberg, Campos sobrepõe o esquema dodecafônico de Schoenberg. Sobre um close-up do Varèse jovem, Campos sobrepõe uma página de Ionisation. Sobre um close-up do Varèse velho, Campos sobrepõe uma página de Hyperprism. Sobre a fotografia de certo fenômeno interestelar, Campos sobrepõe a calva do Nono maduro: "Nono Big Bang"!! Sobre a fotografia de outro fenômeno interestelar, Campos sobrepõe a calva do Nono velho: "Nono Quasar"!!! Sobre uma fotografia de Cage e de Campos, Campos sobrepõe a partitura de 4'33". O prórpio Campos está un peu partout: com Olga Rudge em Castel Fontana em 1991; com familiares chez Cage em 1978; limpando batom da face de Cage em 1985; molestando Cage com poesia concreta em 1985. A música de invenção não se atém a regras de etiqueta ou erudição. Por que Campos se ateria? E por que nos ateríamos nós?

Como é que Campos se sai quando Música de invenção é avaliada pelos critérios estabelecidos por Pound e traduzidos pelo próprio Campos? Nem belles lettres nem modista, antes um pouco de cada um, o especialista da crítica de disco Campos vai ditando os ins e outs de seu credo modernista enquanto inexoravelmente marcha para a instância final de vituperação à indústria do disco. Nesta espécie de Caras superintelectualizada, não há espaço para o aparato teórico que o tema possa requerer. Aqueles que compartilham os gostos de Campos dirão que ele cumpra o papel do crítico de segunda. Mas Campos sabe se fazer notar. Campos fala de Campos e de seus autores prediletos. Quanto às obras, ele é sucinto: "Viva Webern!", "Viva Varèse!", observem-se as similaridades entre estes nomes... O leitor é constrangido a arbitrar um jogo onde importa avaliar: (1) quem descobriu primeiro o último compositor; (2) quem escreveu primeiro sobre seu primeiro trabalho; (3) quem comprou primeiro seu primeiro disco. Tendo feito as escolhas erradas, Mário de Andrade (Nacionalismo) e Willy Corrêa de Oliveira (Bolchevismo) perderam-se e perderam o jogo. Secundado por Nestrovski, Campos ganha.

Em sua Pequena história da música (1942) Mário de Andrade afirma que "também nos trios, quartetos, quintetos, apareceu uma floração nova interessantíssima, empregando os mais desusados e curiosos agrupamentos solistas (Kurt Weill, Falla, Ezra Pound, Anton Webern)". Campos conclui que Andrade era um travesti de musicólogo. E lemos em Música de invenção que "dele [Nestrovski] recebi duas fitas com algumas novidades musicais: Wishart, Ferneyhough, Smalley, Philip Glass etc. Tudo muito interessante." Ora, o pai da musicologia brasileira era um modernista no início da década de vinte, quando ser modernista era de rigor para um jovem brilhante da intelligentsia progressista paulistana. O Campos modernista é um retardatário. O Campos pós-moderno não convence. Ele enquadra-se perfeitamente no modelo "alta cultura mais o melhor da música popular" que Georgina Born discerne no IRCAM (Rationalizing Culture, 1995).

Na medida em que apresenta um poeta essencialmente visual no papel de farol da vanguarda musical, Música de invenção de fato é, como o quer Tragtenberg, "um documento único sobre a vida musical e cultural brasileira das últimas décadas", do Maestro X ao Doutor Y. Campos deve ser responsabilizado pelo fato de que o trocadilho barato se tenha visto promovido ao estatuto de forma honrada de atividade mental e, portanto, pelo fato de que cantores populares se tenham visto promovidos ao estatuto de intelectuais. Desta forma, o pensamento foi aviltado. A facilidade com que o amador Campos coleta e distribui novidades do exterior é a facilidade com que o intelectual aposentado Cardoso coleta e distribui memorandos do Fundo Monetário Internacional. O musicólogo Campos há de tornar-se redundante pelo acesso à rede mundial. Até lá, os poetas brasileiros serão pós-tudo, os compositores brasileiros serão os maiores das Américas, os travestis brasileiros serão os mais procurados da Europa, os intelectuais brasileiros serão os mais marxistas do mundo. Lá fora, eles vêm da terra do café, do carnaval e do futebol. Aqui, suas casas estão cercadas com arame farpado e lhes faltam dentes. Eles foram violentados por uma elite feudal, de zelo modernista. O país do futuro deu errado. "Yes, nós temos Augusto de Campos!" Alguém está interessado?

Música de invenção, de Augusto de Campos
Editora Perspectiva, São Paulo, Brasil, 1998
274 pp., ilus. Broch., R$30,00
ISBN: não consta.

Resenhado por Carlos Palombini
Pesquisador Visitante
Departamento de Telemática
The Open University
Milton Keynes, Reino Unido
<palombini@altavista.net>

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