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Rainforest Soundwalks: Ambiences of Bosavi, Papua New Guinea
o CD do antropólogo Steven Feld comentado por Carlos Palombini
 

Steven Feld é professor de Antropologia na Universidade de Nova York, onde leciona Antropologia do Som. O termo "antropologia do som" foi cunhado há anos pelo próprio Feld, preocupado com o fato de que "os etnomusicólogos estavam separando artificialmente a organização de som chamada 'música' no ocidente da totalidade do mundo sonoro humano e ambiental" (Feld). A antropologia do som busca conectar a forma acústica/sonora ao sentido social e histórico. Seu livro Sound and Sentiment (University of Pennsylvania Press, 1990) -- já um clássico -- tornou-se particularmente influente ao reconhecer que os "nativos" têm etno-teorias musicais, que eles expressam em linguagem metafórica, através de comparações, por exemplo, com sons de pássaros e córregos. No selo Smithsonian Folkways, Feld acaba de lançar Bosavi: Rainforest Music from Papua New Guinea, mostrando "como os sons da floresta não só inspiram a poesia e a imaginação e os desenhos acústicos das canções, gritos etc. de Bosavi", mas também "como as canções e sons de trabalho e de ritual e de cerimonial transformam estes sons da floresta e são executados em concerto com eles" (Feld). Com o percussionista Mickey Hart, do Grateful Dead, Feld produziu Voices of the Rainforest (1991), um dos títulos de maior vendagem na história do environmental sound e da world music tradicional. "Tudo o que faço concerne tanto à produção do som (às fontes e aos agentes) quanto à recepção do som -- quem ouve, como algo é ouvido" (Feld). O Dr Feld toca trompete baixo, trombone e bombardino no Trio Tom Guralnick de "diversão séria".

Rainforest Soundwalks inclui quatro faixas, de pouco mais de quinze minutos cada uma: seyak, ou butcherbird (assim chamado devido ao hábito de empalar a presa em espinhos); keafo, ou manhã; galo, ou tarde; e nulu, ou noite. A faixa um foi gravada num DAT Sony D7 através de um pré-amplificador Aerco com microfones AKG 460B e CK1 num par estéreo X-Y. As faixas dois, três e quatro foram gravadas num Nagra IV-S estéreo com Dolby SR Bryston, também através de um pré-amplificador Aerco, com microfones AKG 451EB e CK1 num par estéreo X-Y. A edição e mixagem digitais foram realizadas com Manny Rettinger no Ubik Sound, em Albuquerque, no Novo México.

O mini-DAT D7, hoje substituído pelo D8, é pequeno e prático e funciona com quatro pilhas AA, Feld explica. O Aerco, um pré-amplificador feito sob medida por Jerry Chamkis, aceita cabos XLR e tem saídas RCA e mini-jack. "Ele é maravilhosamente silencioso e nítido e permite o uso de microfones topo-de-linha alimentados por phanton power, dispensando assim os circuitos (menos sofisticados) de pré-amplificação do DAT e do Nagra" (Feld). Feld gosta do calor analógico. Ele usou um Nagra até 1992 "porque nada mais resistiria naquele meio" (Feld). O Nagra IV-S é um gravador analógico portátil para fita de áudio de um quarto de polegada. Ele costuma ser usado em gravações musicais de alto padrão, bem como no cinema e na televisão. Os AKGs têm uma curva de resposta ascendente e são muito estáveis e nítidos nas freqüências médias e altas. Eles suportam bastante bem a umidade da floresta. Para obter a versão mais suave possível do campo estéreo, Feld recorreu a um par de microfones cardióides ligeiramente cruzados num par estéreo X-Y. As faixas dois, três e quatro foram gravadas usando o Nagra estéreo com o Dolby Bryston. Feld acredita que este tenha sido o primeiro uso de Dolby SR portátil numa gravação de campo (1990). Assim, obtiveram-se sons de baixo volume com um mínimo de ruído.

O título Rainforest Soundwalks pode evocar imagens de um explorador de sons equipado com um DAT portátil e um par de microfones binaurais OKM II abrindo caminho na floresta equatorial em busca de sons exóticos. Não se trata disso. Em primeiro lugar, porque há muito pouco deslocamento físico com o microfone: "a duração de cada peça (faixas dois, três e quatro) não é a duração de uma caminhada física ou de um movimento contínuo com o microfone" (Feld). Depois, porque Feld não "caminha" no interior da selva, mas em seus limites, no local onde a floresta e a aldeia se encontram. Por fim, porque há uma dose extraordinária de ambigüidade sonora no que diz respeito ao espaço da floresta e, "ao contrário das configurações A-B, ORTF e binaural de gravação estéreo, o par X-Y não espacializa excessivamente a esquerda e a direita" (Feld). Rainforest Soundwalks é o passeio de uma escuta e não o passeio de um ouvinte.

Cada um de meus "passeios sonoros" ocorre num local distinto da floresta, num momento distinto do dia. Mas cada um é realmente sobre uma forma de escutar a floresta em seus limites. O "passeio sonoro" acorre na cabeça e no corpo, na forma de escutar, na atenção dispensada ao campo sonoro circundante/movente. Trata-se de compósitos, não só da altura e da profundidade, do espaço e do tempo da floresta, mas também duma história de escuta -- minha história de escutar e ser ensinado a escutar, por mais de vinte anos. É por isto que os denomino uma "acustemologia", uma maneira sonora de conhecer o lugar, uma maneira de atentar ao ouvir, uma maneira de absorver. Ainda que imóvel, o corpo está fazendo o movimento. Ainda que geograficamente fixos, os microfones estão captando deslocamento. O "passeio sonoro" é uma áudio-imagem, em camadas densamente sobrepostas, desta experiência. (Feld)
Rainforest Soundwalks apresenta um retábulo em quatro painéis por cujas tramas uma escuta deambula, do contraste extremo entre figura e fundo da primeira faixa à esplêndida textura da faixa final, onde cada componente é ele próprio um solista.
Da densidade dos sons, "solos" emergem apenas para serem momentaneamente registrados e devolvidos ao espaço que ocupam na densidade total. A poesia sonora da floresta está aqui, nesta densidade de textura. Cada uma das imersões auditivas quer mostrar uma maneira diferente como fontes sonoras múltiplas se entrelaçam, sobrepõem e alternam para criar este espaço acústico que segue descrevendo um arco ascendente ao avançar. É assim que o som relata ao ouvinte a posição exata de escuta, a hora do dia, a estação do ano, a orientação na geografia da floresta. (Feld)
Para ouvidos acostumados, pela prática da escuta reduzida, a perceber os sons enquanto tal, Rainforest Soundwalks oferece uma experiência única. As manipulações às quais Feld submete seus sons são sutis mas inequívocas, como se a "realidade" estivesse sempre pronta a mergulhar no hiper-realismo. Aceitando, sublinhando e pontuando a vontade composicional dos sons que usa, Feld nos mantém em constante incerteza quanto a se ouvimos a floresta como ela é ou como ele a escuta.
Rainforest Soundwalks é evidentemente uma gravação muito "musical" na medida em que apresenta um novo campo de sons e está estruturado para fornecer uma abertura para a escuta, que pode ser tanto narrativa quanto não-narrativa. Não é um tipo literal de música de programa. Mas também não é inteiramente abstrato. Usa técnicas de edição e arranjo composicional muito influenciadas por meus estudos de música eletroacústica. Ao mesmo tempo, dialoga também com outras gravações ambientais, naturais, históricas, de ecologia acústica e paisagem sonora (rádio/performance). Estou tentando atingir simultaneamente praticantes das artes sonoras, ecólogos, antropólogos, gente da paisagem sonora e do rádio e compositores de música experimental. Ouço freqüentemente e com atenção o trabalho dessa gente toda, e Rainforest Soundwalks é muito sobre meu diálogo com seus trabalhos, e também sobre minha forma característica de ouvir, absorvida em anos de convívio com as florestas de Bosavi. (Feld)
Para entendermos melhor a vasta ecologia acústica de Bosavi, que tem sido sua paixão por anos, Feld gostaria que colocássemos Rainforest Soundwalks lado a lado com Bosavi: Rainforest Music from Papua New Guinea, a antologia de três CDs e livreto que ele acaba de lançar pelo selo Smithsonian Folkways. O conjunto destas obras representa toda uma antropologia de e em som da comunidade em questão. Seja como for, "Rainforest Soundwalks é a gravação fundacional: ela faz ouvir as faixas básicas, o cotidiano sonoro -- sejam solos agudos de pássaros ou ambiências mais abertas -- que as pessoas escutam vida afora" (Feld).

Rainforest Soundwalks foi produzido em parceria com o Fundo do Povo de Bosavi, que receberá a metade de todos os proventos, uma vez que se tenham recuperado os custos de produção. O CD está disponível através de Earth Ear, 45 Cougar Canyon, Santa Fé, Novo México 87505; telefones 505 466ñ1879 e 888 356ñ4918; fax 505 466ñ4930; endereço eletrônico: <info@earthear.com>; URL: <http://www.earthear.com>.

O autor agradece ao Dr Feld a disponibilidade para responder perguntas relativas a seu trabalho em geral e a este CD em particular.


Rainforest Soundwalks: Ambiences of Bosavi, Papua New Guinea
de Steven Feld. EarthEar, Santa Fé, Novo México, 2001.
CD e livreto ilustrado de 12 páginas. US$15.00.
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Resenhado por Carlos Palombini
Pesquisador Visitante
Departamento de Telemática
The Open University
Milton Keynes, Reino Unido
<palombini@altavista.net>